" Tinha 30 anos quando decidiu :
a partir de hoje , nunca mais lavarei a cabeça .
Passou o pente devagar nos cabelos , pela última vez
molhados . E começou a construir sua maturidade .
Tinha 50 anos , e o marido já não pedia , os filhos
haviam deixado de suplicar .
Asseada , limpa , perfumada , só a cabeça preservada ,
intacta com seus humores , seus humanos óleos .
Nem jamais se deixou tentar por penteados novos
ou anúncios de xampu .
Preso na nuca o cabelo crescia quase intocado ,
sem que nada além do volume do coque acusasse o
crescente brotar .
Aos 80 , a velhice a deixou entregue a uma enfermeira .
A qual , a bem da higiene , levou-a um dia para debaixo
do chuveiro , abrindo o jato sobre a cabeça branca .
E tudo o que ela mais havia temido aconteceu .
Levadas pela água , escorrendo liquefeitas ao longo
dos fios para perderem-se no ralo sem que nada
pudesse retê-las , lá se foram , uma a uma ,
suas lembranças ."
Marina Colassanti , in " Contos de Amor Rasgado "
Nenhum comentário:
Postar um comentário