sábado, 4 de setembro de 2010
No sábado ? Clarice por Clarice
" Mulher feita tive um cachorro vira-lata
que comprei de uma mulher do povo
no meio do burburinho de uma rua de Nápoles
porque senti que ele nascera para ser meu,
o que ele também sentiu em alegria enorme ,
imediatamente me seguindo já sem saudade
da ex-dona , sem sequer olhar para trás ,
abanando o rabo e me lambendo .
Mas é uma história comprida , a de minha vida
com esse cão que tinha cara de
mulato-malandro brasileiro , apesar de ter nascido
e vivido em Nápoles , e a quem dei o nome
rebuscado de Dilermando pelo que nele
havia de pernosticamente simpático e
de bacharel de começo de século .
Desse Dilermando eu teria muito a contar.
Nossas relações eram tão estreitas ,
sua sensibilidade estava de tal modo ligada
à minha que ele pressentia e
sentia minhas dificuldades .
Quando eu estava escrevendo à máquina ,
ele ficava meio deitado ao meu lado ,exatamente
como a figura da esfinge , dormitando.
Se eu parava de bater por ter encontrado
obstáculo e ficava muito desanimada
ele imediatamente abria os olhos ,
levantava alto a cabeça , olhava-me com uma das
orelhas em pé ,esperando.
Quando eu resolvia o problemae continuava
a escrever ,ele se acomodava de novo na sua
sonolência povoada de sonhos -
porque cachorro sonha , eu vi .
Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser
tão totalmente amada como fui amada
sem restrições por esse cão .
(...)
" Ter bicho é uma experiência vital .
E a quem não conviveu com um animal
falta um certo tipo de intuição do mundo vivo.
Quem se recusa à visão de um bicho está
com medo de si próprio ."
in, Clarice Lispector , " Aprendendo a viver " ,
crônica , " Bichos " ( 1 )
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