sábado, 18 de setembro de 2010
A saia almarrotada
Trecho do conto
" Na minha vila , a única vila do mundo,
as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem.
Para serem abraçadas pela felicidade .
A mim , quando me deram a saia de rodar , eu me
tranquei em casa .
Mais que fechada , me apurei invisível ,
eternamente nocturna .
Nasci para cozinha , pano e pranto.
Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer ,
que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
Por isso , perante a oferta do vestido , fiquei dentro ,
no meu ninho ensombrado .
No dia seguinte , as outras chegariam e me falariam do
baile , das lembranças cheias de riso matreiro .
E nem inveja sentiria .
(...)
Na minha vila , as mulheres cantavam .
Eu pranteava .
Apenas quando chorava me sobrevinham belezas .
Só a lágrima me desnudava , só ela me enfeitava.
( ... )
Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele
estivesse vivo . Era essa voz que fazia Deus existir .
Que me ordenava que ficasse feia , desviçosa a vida inteira.
Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai .
Sempre ceguei em obediência , enxotando tentações que
piripirilampejavam a minha meninice .
Obedeci mesmo quando ele ordenou :
Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido !
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente
me havia oferecido .
Não cumpri .
Guiaram-me os mandos do diabo e , numa cova ,
ocultei esse enfeitiçado enfeite .
( ...)
E pergunto : posso agora , meu pai . agora que eu
já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido ,
posso agora me embelezar de vaidades ?
Fico à espera de sua autorização , enquanto vou
ao pátio desenterrar o vestido do baile que não houve .
E visto-me com ele . me resplandeço ante o espelho ,
rodopio para enfunar a roupa .
Uma diáfana música me embala pelos corredores da casa .
Agora , estou sentada , olhando a saia rodada ,
a saia amarfanhosa , almarrotada .
E parece que me sento sobre minha própria vida ."
Mia Couto , in " O Fio das Missangas "
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