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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

NA MARGEM

Jean  Paul  Nacivet 

" No  seu  rosto algumas  mulheres 
 mergulham desabaladamente .
Outras , mais  cautelosas , 
já  tendo apanhado da vida ,
chegam  pisando  de  lado ,
 aproximam-se  devagar .
Começam  por  molhar  os  dedos , 
depois ,  com  um  olhar 
que  se quer  distraído , 
dispõem-se  a  banhar  os  pés 
( são estas , talvez ,  as  que  correm  maior perigo -
 pois  ao senti-las  reticentes ,
 suas  águas  se  temperam  de  encantos 
luminosos , flutuantes , evanescentes ,
 e  em  breve  se estendem ,
em pequenas  ondas  graciosas ,
 ao  redor  dos  tornozelos .
Quando  dão por  elas - pronto !
 - já  estão  mergulhadas  até
o pescoço .)
Outras , ainda , ( as  tolas ) acreditam 
 possuir alguma qualidade
especial  que  as  tornará  necessárias 
 ao  mistério  das suas profundezas . 
Como se os seus  corpos , ao se banharem naquele
líquido , estivessem , por contraste , 
oferecendo  a  ele  alguma  coisa  de  útil .
Pura  ilusão .
 Não percebem ,  as  desavisadas ,
 as pretensiosas , que , no contato íntimo 
 da  sua água  com  a  pele ,
 ela  nunca , propriamente  as  penetra . 
Envolve , talvez . 
Adula , acaricia . Aquece . 
Recebe , torna  macia  e cheia  de luz - mas nunca ,
nunca  a  ela  se  mistura .
Aos  seus  olhos , portanto , 
cada mulher  não passa de um corpo ,
 massa  sólida  a se deslocar de um lado para o outro ,
com  maior graça  ou  menor  grau de desconforto , mas
ainda  e  apenas  isto :  um  objeto fugidio ,
 que  nada  tira  nem  em  nada  lhe  acrescenta -
 um  acaso do movimento  que ,
meramente  se  dá .
Não  eu .
 Eu não sou  como  nenhuma - nem  uma única 
dessas  tristes  mulheres .
Conheço  e  palmilho ,  a cada  dia ,
 a completa extensão  de  sua  orla .    
Percorro , de pés  descalços , sua órbita ,
 tropeçando  em  pequenas pedras , 
cortando a pele  no  espinhal . 
Há  ocasiões  que  sangro  profusamente ,
e  é  preciso  que  pare  e  me  sente
  para  descansar em  alguma  pedra 
 da  região  desértica  que
circunda  o  seu  perímetro .
Nestas  vezes , tenho  oportunidade  de observar
de perto  o banho  das  outras  mulheres : 
seus  movimentos aéreos  e leves ;
tremeluzindo  no  rosto ,
 a surpresa  e a delícia iniciais ;
a  seguir , o despontar  do  desconforto , 
e nas sobrancelhas  franzidas ,
 a breve desconfiança 
da promessa  de saciedade  que nunca se realiza .
E , logo , ao constatarem  a perda do próprio  reflexo,
os músculos  que se retesam , 
os esgares aterrorizantes ,
a tentativa de fuga  entre grunhidos - 
apenas  para ,no fim , o corpo ,
 como um menir ,  ser tragado ,
inerte , para a areia escura lá no fundo .
E é por isso - por ter assistido tantas e tantas vezes 
a este  terrível espetáculo  que reúno  em mim 
as  forças  para  manter  a disciplina :
por  maior que  seja  a  sede , 
por  mais que me deforme 
e arda  no rosto esta máscara de barro  ressecado 
( à noite , sonho com o bálsamo do seu  úmido abraço ),
em  suas  águas não  entrarei ."

Claudia Roquette-Pinto 

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