sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

VERMELHO AMARGO

Margareth   Fischer 

(  ...)

" Dói . Dói muito . Dói  pelo corpo inteiro .
Principia  nas unhas , passa pelos  cabelos ,
contagia  os ossos , penaliza a memória  e
se  estende  pela  altura  da  pele .
Nada  fica  sem  dor .
Também  os  olhos , que só armazenam 
as  imagens  do que já  fora , doem .
A  dor  vem  de  afastadas  distâncias ,
sepultados  tempos , inconvenientes  lugares ,
inseguros  futuros .
Não  se  chora  pelo  amanhã .
Só  se  salga  a carne  morta ."


Bartolomeu  Campos de Queirós 
in  ,  "  Vermelho  Amargo "



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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

VERSOS DE HOJE ...

Duy  Huynh

"  Antes  que  venham  ventos e te levem 
do  peito  o amor - este  tão  belo  amor ,
que  deu grandeza  e graça  à  tua  vida - ,
faze  dele , agora ,  enquanto é tempo ,
uma  cidade  eterna - e nela  habita ."


Thiago  de Mello ,
no poema " Sugestão " 

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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

NA MARGEM

Jean  Paul  Nacivet 

" No  seu  rosto algumas  mulheres 
 mergulham desabaladamente .
Outras , mais  cautelosas , 
já  tendo apanhado da vida ,
chegam  pisando  de  lado ,
 aproximam-se  devagar .
Começam  por  molhar  os  dedos , 
depois ,  com  um  olhar 
que  se quer  distraído , 
dispõem-se  a  banhar  os  pés 
( são estas , talvez ,  as  que  correm  maior perigo -
 pois  ao senti-las  reticentes ,
 suas  águas  se  temperam  de  encantos 
luminosos , flutuantes , evanescentes ,
 e  em  breve  se estendem ,
em pequenas  ondas  graciosas ,
 ao  redor  dos  tornozelos .
Quando  dão por  elas - pronto !
 - já  estão  mergulhadas  até
o pescoço .)
Outras , ainda , ( as  tolas ) acreditam 
 possuir alguma qualidade
especial  que  as  tornará  necessárias 
 ao  mistério  das suas profundezas . 
Como se os seus  corpos , ao se banharem naquele
líquido , estivessem , por contraste , 
oferecendo  a  ele  alguma  coisa  de  útil .
Pura  ilusão .
 Não percebem ,  as  desavisadas ,
 as pretensiosas , que , no contato íntimo 
 da  sua água  com  a  pele ,
 ela  nunca , propriamente  as  penetra . 
Envolve , talvez . 
Adula , acaricia . Aquece . 
Recebe , torna  macia  e cheia  de luz - mas nunca ,
nunca  a  ela  se  mistura .
Aos  seus  olhos , portanto , 
cada mulher  não passa de um corpo ,
 massa  sólida  a se deslocar de um lado para o outro ,
com  maior graça  ou  menor  grau de desconforto , mas
ainda  e  apenas  isto :  um  objeto fugidio ,
 que  nada  tira  nem  em  nada  lhe  acrescenta -
 um  acaso do movimento  que ,
meramente  se  dá .
Não  eu .
 Eu não sou  como  nenhuma - nem  uma única 
dessas  tristes  mulheres .
Conheço  e  palmilho ,  a cada  dia ,
 a completa extensão  de  sua  orla .    
Percorro , de pés  descalços , sua órbita ,
 tropeçando  em  pequenas pedras , 
cortando a pele  no  espinhal . 
Há  ocasiões  que  sangro  profusamente ,
e  é  preciso  que  pare  e  me  sente
  para  descansar em  alguma  pedra 
 da  região  desértica  que
circunda  o  seu  perímetro .
Nestas  vezes , tenho  oportunidade  de observar
de perto  o banho  das  outras  mulheres : 
seus  movimentos aéreos  e leves ;
tremeluzindo  no  rosto ,
 a surpresa  e a delícia iniciais ;
a  seguir , o despontar  do  desconforto , 
e nas sobrancelhas  franzidas ,
 a breve desconfiança 
da promessa  de saciedade  que nunca se realiza .
E , logo , ao constatarem  a perda do próprio  reflexo,
os músculos  que se retesam , 
os esgares aterrorizantes ,
a tentativa de fuga  entre grunhidos - 
apenas  para ,no fim , o corpo ,
 como um menir ,  ser tragado ,
inerte , para a areia escura lá no fundo .
E é por isso - por ter assistido tantas e tantas vezes 
a este  terrível espetáculo  que reúno  em mim 
as  forças  para  manter  a disciplina :
por  maior que  seja  a  sede , 
por  mais que me deforme 
e arda  no rosto esta máscara de barro  ressecado 
( à noite , sonho com o bálsamo do seu  úmido abraço ),
em  suas  águas não  entrarei ."

Claudia Roquette-Pinto 

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sábado, 8 de fevereiro de 2014

AS ESTAÇÕES

Leonid  Afremov 

" Estão em  mim   as  estações 
como se fossem uma só
as quatro sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da  aurora até o ocaso
a chuva  o  verde  o sol   o  vento
sem  me desvelar  estão  em  mim
são  a missão recém-nascida
e  são  os  mortos do meu mundo
minhas  ocultas  estações 
me  fazem feliz / sofrem por mim
cada  uma delas tem um céu
e  cada  céu  é  um  espelho
que  fala de todos  e de mim
as  estações  se  congregam
se  reconhecem  e se abraçam
as quatro sempre  estão em mim
sou  seu fervor  suas folhas  mortas 
seu  granizo  suas colheitas 
sua  porta  aberta  seus  cadeados 
sua  insolação  seus  aguaceiros 
como  um  destino  estão  em mim
as  estações  se  embaralham
para  se  mesclar   com   minha  vida 
para  se  juntar  com  minha  morte 
e então  fugir  de  mim ."

Mario Benedetti 
in , " Correio  do  tempo "

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sábado, 1 de fevereiro de 2014

O ATOR

Jean  Paul  Nacivet 

" Pensei  em  mentir , pensei em fingir ,
dizer : eu tenho um tipo raro de ,
estou à beira ,

embora  não aparente . Não aparento ?
Providências :  outra  cor  na pele,
a mais pálida ;  outro fundo para a foto :

nada ; os braços caídos , um mel 
pungente  entre os dentes .
Quanto  à  tristeza 

que a distância  de você  me faz ,
está perfeita , fica como está : fria ,
espantosa , sete dedos 

em cada mão . Tudo para que seus olhos 
vissem , para que seu corpo 
se apiedasse  do meu e , quem sabe 

sua  compaixão , por um instante ,
transmutasse  em boca , a boca em pele ,
a pele  abrigando-nos  da tempestade lá fora .

Daria a isso  o nome de felicidade ,
e morreria .
Eu  tenho um tipo raro . "

Eucanaã Ferraz 
in , " Cinemateca "  

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