sábado, 15 de maio de 2010

Brilhantes heterônimos de Fernando Pessoa



Álvaro de Campos

Poema em linha reta


" Nunca conheci quem tivesse levado porrada .

Todos meus conhecidos tem sido campeões em tudo .

E eu , tantas vezes reles , tantas vezes porco , tantas vezes vil ,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita ,

Indesculpavelmente sujo ,

Eu , que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho ,

Eu , que tantas vezes tenho sido rídiculo , absurdo ,

Que , tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas ,

Que , tenho sido grotesco , mesquinho , submisso e arrogante ,

Que , tenho sofrido enxovalhos e calado ,

Que , quando não tenho calado, tenho sido mais rídiculo ainda;

Eu , que tenho sido cômico às criadas de hotel ,

Eu , que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes ,

Eu , que tenho feito vergonhas financeiras , pedido emprestado sem pagar ,

Eu , que quando a hora do soco surgiu , me tenho agachado ,

Para fora da possibilidade do soco ;

Eu , que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas rídiculas ,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo .

Toda a gente que fala comigo

Nunca teve um ato rídiculo , nunca sofreu enxovalho ,

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida ...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana ,

Que confessasse não um pecado , mas uma infâmia ;

Que contasse , não uma violência , mas uma cobardia !

Não , são todos o Ideal , se os oiço e me falam .

Quem há neste largo mundo que me confesse que alguma vez foi vil ?

Ó príncipes , meus irmãos

Arre ! Estou farto de semideuses !

Onde é que há gente no mundo ?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra ?

Poderão as mulheres não os terem amado ,

Podem ter sido traídos - mas rídiculos nunca !

E eu , que tenho sido rídiculo sem ter sido traído ,

Como posso eu , falar com meus superiores sem titubear ?

Eu que tenho sido vil , literalmente vil ,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza ."

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