quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Ouçamos Clarice :



" Perguntaram-me uma vez qual fora

o primeiro livro de minha vida .

Prefiro falar do primeiro livro

de cada uma de minhas vidas.

Busco na memória e tenho a sensação

quase física nas mãos ao segurar

aquela preciosidade : um livro fininho

que contava a história do patinho feio

e da lâmpada de Aladim . Eu lia e relia

as duas histórias , criança não tem disso

de só ler uma vez : criança quase aprende

de cor , relê com muito da excitação da

primeira vez .

( ...)

Tive várias vidas .

Em outra de minhas vidas,

o livro sagrado foi emprestado porque


era muito caro : Reinações de Narizinho .

Já contei o sacrifício de humilhações e

perseveranças pelo qual passei , pois ,

já pronta para ler Monteiro Lobato , o

livro grosso pertencia a uma menina cujo

pai tinha uma livraria . A menina gorda e

sardenta se vingara tornado-se sádica e ,

ao descobrir o que valeria para mim ler

aquele livro , fez um jogo de "amanhã

venha em casa que eu empresto ."

Quando eu ia , com o coração literalmente

batendo de alegria , ela me dizia :

" Hoje não posso emprestar , venha amanhã."


Depois de cerca de um mês de venha amanhã ,

o que eu , embora altiva que era , recebia com

humildade para que a menina não me cortasse

de vez a esperança , a mãe daquele primeiro

monstrinho de minha vida notou o que se

passava e , um pouco horrorizada com a

própria filha , deu-lhe ordens para que naquele

mesmo momento me fosse emprestado o livro .

Não o li de uma vez : li aos poucos , algumas

páginas de cada vez para não gastar.

Acho que foi o livro que me deu mais alegria

naquela vida .

Em outra vida que tive , eu era sócia de


uma biblioteca popular de aluguel .


Sem guia , escolhia os livros pelo título.


E eis que escolhi um dia um livro chamado

O lobo da estepe, de Herman Hesse .

O livro que li cada vez mais deslumbrada ,

era de aventura , sim , mas outras aventuras .

Eu havia entrado em contato com a grande

literatura .


(...)


Em outro vida que tive , aos 15 anos ,com

o primeiro dinheiro ganho por trabalho

meu , entrei altiva porque tiha dinheiro ,

numa livraria , que me pareceu o mundo

onde eu gostaria de morar .

Folheei quase todos dos balcões , lia

algumas linhas e passava para outro .

E de repente , um dos livros que abri

continha frases tão diferentes que fiquei


lendo , presa , ali mesmo .

Emocionada eu pensava : mas este livro

sou eu ! E, contendo um estremecimento de

profunda emoção , comprei-o .

Só depois vim a saber que a autora não

era anônima , sendo , ao contrário , considerada

um dos melhores escritores de sua época :

Katherine Mansfield ."






Clarice Lispector ,in, " O primeiro livro

de cada uma de minhas vidas "


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