A escrita de Mia Couto me fascina .
A reinvenção das palavras e suas metáforas .
Partilho com vocês , pequenos fragmentos da novela
" MAR ME QUER " , onde é contada
a história de Dona Luarmina e Zeca Perpétuo .
( ...)
"Lançamos o barco , sonhamos a viagem :
quem viaja é sempre o mar .
( dito de meu avô Celestiano )
(...)
Sou feliz só por preguiça .
A infelicidade dá uma trabalheira
pior que doença : é preciso entrar e sair dela ,
afastar os que nos querem consolar ,
aceitar pêsames por uma porção da alma
que nem chegou a falecer .
(...)
Minha vizinha reclama não haver homem
com miolo tão miúdo como eu .
Diz que nunca viu pescador deixar escapar
tanta maré :
- Mas você Zeca :
é que não faz nem ideia da vida .
- A vida Dona Luarmina ?
A vida é tão simples que ninguém a entende .
É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos
Deus e não- Deus...
Além disso , pensar traz muita pedra
e pouco caminho .
Por isso eu , um reformado do mar ,
o que me resta fazer ?
Dispensado de pescar me dispenso de pensar .
Aprendi nos muitos anos de pescaria :
o tempo anda por ondas .
A gente tem é que ficar levezinho e sempre
apanha boleia numa destas ondeações .
( ...)
Hoje sei como se mede a verdadeira idade :
vamos ficando velhos quando não fazemos
novos amigos . Estamos morrendo a partir
do momento que não nos apaixonamos .
( ...)
E até que dona Luarmina , aliás
Albertina da Conceição Melistopolus ,
já foi bela de espantar homenzarrada .
(...)
Restava-me a presente figura
de Luarmina , gorda e engordurada .
A mulher por razões de angústia
se deixara acumular , quilos
sobre peso . Eu entendo :
uma boa maneira de esconder a tristeza
é cobrirmo-nos de carne .
O sofrimento é fatal quando atinge
os ossos .
Chegada aí , a tristeza se apressa
em virar esqueleto .
Sábio é dar cobertura ao corpo ,
intermediar gordurosas fronteiras .
(...) Já faz anos que rondopio à volta
da viúva . Arrisco mesmo perder
plumagens nesta insistência .
A estratégia é lhe contar minhas
aventuras : invento fatos passados
em minhas atribulações marinhas .
Mas não são aventuras que a fazem sonhiscar .
O que dona Luarmina me solicita são
exatas memórias .
E isto é o que eu menos quero .
(...)
Saudades , em mim , nunca têm pressa .
Demoram tanto que nunca chegam .
Só quando eu danço me liberto do tempo
- esvoam as memórias , levanto voo
de mim .
Eu devia era dançar o tempo todo ,
dançar para ela , dançar com ela .
(...)
Insisto com dona Luarmina :, ela não me peça
lembranças . Eu quero matar o passado,
esta mulher tem que me deixar cometer este
crime .Caso senão é o passado que me
mata a mim .
-Você Zeca , tem raiva do passado ,
tem ciúme do futuro , vai viver só nos agoras ?
Reformado das pescas nem no presente
tenho cabimento .
Enquanto andava no mar ,embalado em meu
barco , eu não sofria o tempo .
Porque esta ondeação era , afinal , uma dança .
E a dança , já disse ,é a melhor maneira
de fugir do tempo .
(...)
Luarmina se entranhou na sua pequena
mania , como se descosturasse um
pano nenhum :
Mar me quer , bem me quer ...
Este era o contochão de Luarmina ,
o infindo rameramejar dela .
Todos fins de tarde , a mulata fica sentada
num degrau da varanda e vai desfolhando
infinitas flores . Ao fim de um tempo ,
todo o pátio está forrado a pétalas ,
o chão espantado a mil cores ."
Som na caixa ...