quarta-feira, 30 de junho de 2010

Vinicius de Moraes : O Haver


" Resta , acima de tudo , essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta esta voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai ! eles não tem culpa de ter nascido...


Resta esse antigo respeito pela noite , esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter , esse medo
De ferir tocando , essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo que existe .


Resta essa imobilidade , essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida .

Resta essa comunhão com os sons , esse sentimento
De matéria em repouso , essa angústia da simultaneidade
Do tempo , essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida , uma só morte , um só Vinicius .

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas , essa tristeza
Diante do cotidiano , ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória ...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo , essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil .

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos , essa tola capacidade
De rir à toa , esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade .

Resta essa distração , essa disponibilidade , essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será e virá a ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir , essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tem ontem nem hoje .

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade , dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é , e essa visão
Ampla dos acontecimentos , e essa impressionante

E desnecessária presciência , e essa memória anterior
De mundos inexistentes , e esse heroismo
Estático , e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança .

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva .

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza instrínseca , esse orgulho , essa vaidade
De não querer ser princípe senão do seu reino .

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado .

Resta esse diálogo cotidiano com a morte , esse fascínio
Pelo momento a vir , quando , emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada ."


Poesia declamada pelo autor no disco
" Vinicius de Moraes - Antologia Poética ".

Um comentário:

  1. Marisa,
    Eu não conhecia esta poesia do Vinícius. Vou lê-la mais vezes.
    "Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
    E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado."
    Estes dois parágrafos são...nem tenho comentários para a sua beleza.
    Parabéns pelo bom gosto e pela sensibilidade.
    Beijo,
    Nédier

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