domingo, 30 de julho de 2017

ETERNAMENTE

Mark  Keller 

"  E escrevi  o teu nome e o teu número de telefone 
numa página da agenda  de Fevereiro .
E , ao escrevê-lo , sabia que era uma despedida ,
mas todo o mês de Março nos arrastamos  na
despedida ,  como caranguejos na maré vazia .
Sem ti , lancei  outras raízes , construí pátios  e
terraços , fontes cujo som deveria apagar todos
os silêncios , plantei um pomar com cheiro a damasco ,
mandei  fazer um banco de cal  à roda de uma árvore    
para olhar as estrelas do céu , um caminho  no meio
do olival  por onde o luar pousaria à noite , 
abóbadas de tijolo  imaginadas pelo mais sábio 
dos arquitetos  e até teias de aranha  suspensas
do teto , como se vigiassem  a passagem do tempo .
Nada disso  tu viste ,  nada te contei , nada é teu .
Sozinhos , eu e a aranha  pendurada na sua teia ,
contemplamo-nos  longamente ,
 como quem  se descobre   ,
como quem se recolhe ,
como quem se esconde .
Foi assim que vi  desfilar os anos ,
as paredes escurecendo ,
um pó de tijolo  pousando entre as páginas 
dos mesmos livros  que fui lendo , repetidamente .

( ... )

E arranquei a página da agenda  com o teu 
nome  e o teu número de telefone .
Veio a seguir Abril e depois o Verão .
Vi nascer  a flor da tremocilha e das buganvílias
adormecidas , vi rebentar o azul dos jacarandás 
em Junho , vi noites de lua cheia  em que todos
os animais noturnos se chamavam rãs ,
corujas e grilos ,  e um espesso calor sobre
a devassidão da cidade .
E já nada disto ,  juro , era teu .   
E foi assim que descobri  que todas as 
coisas continuam para sempre , 
como um rio  que corre ininterruptamente 
para o mar , por mais que façam para o deter . 

( ...)

E a tua voz  ouço-a agora , vinda de longe , 
como o som do mar  imaginado dentro 
de um búzio .  Vejo-te através da espuma
quebrada na areia das praias , num mar 
de Setembro , com cheiro a algas e a iodo .
E de novo acredito que nada do que é 
importante  se perde verdadeiramente .
Apenas nos iludimos , julgando ser donos
das coisas , dos instantes  e dos outros .
Comigo caminham todos os mortos que amei ,
todos os amigos que se afastaram , 
todos  os dias felizes que se apagaram .
Não perdi nada , apenas a ilusão de que 
tudo  podia ser meu para sempre . "

Miguel Souza Tavares ,
no texto , " Eternamente " ,
 contido no livro
 " Não te deixarei morrer, David  Crockett "

Som  na  Caixa ...


16 comentários:

  1. Linda poesia,Marisa! Um tema que empolga e foi bem, retratado nela. bjs, linda semana,chica

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    1. Bom que tenha gostado ,Chica . Obrigada por vir . Beijos e boa semana .

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  2. Que poema especial, lindo e fui lendo-o
    mergulhada nas lágrimas...
    Quando cheguei no vídeo-música, sublime,
    sublime e a emoção transbordou...rss
    Você, minha amiga me proporciona este
    momento assim, sublime, emotivo e
    inesquecível de leitura e música nas
    artes escolhidas por você, abençoado
    bom gosto, Marisa!!!

    Uma semana luminosa no tom deste
    sublime para você!
    Beijos.

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    1. Suzete , você me deixa tão feliz com seus comentários sempre amorosos e generosos . Obrigada , amiga . Beijos

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  3. Fabuloso texto! A cada segmento frásico, uma emoção a invadir a alma e a agitar todo o pensamento existencial...
    A escolha musical, também concorre para o crescendo emotivo...
    Não conhecia; grata por divulgar.
    Bjinho, Marisa

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    1. O autor do texto só poderia ser filho de Sophia de Melo Andresen , não é ? Tanta sensibilidade herdada , com certeza dela . Agradeço muito
      sua visita . Beijos

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  4. Eternamente, para sempre e infinito são palavras que andam de mãos dadas. Adorei o texto. Já te sigo! AbraçO

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    1. Nidja , ter mais uma companhia neste espaço é motivo de alegria . Muito obrigada . Beijos

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  5. Somente para deixar o meu carinho e
    votos de uma semana feliz, minha amiga!
    Grata pela sua presença luminosa no meu
    espaço!!
    Beijos.

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    1. Suzete , este seu carinho é muito bem-vindo . Fico feliz .
      Obrigada .
      Semana de paz e alegria pra você .
      Beijos

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  6. Olá, excelente texto do Miguel Souza Tavares, gostei de o ler, "filho de peixe sabe nadar."
    Continuação de boa semana,
    AG

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  7. António , é bom quando nossa escolha agrada aos amigos . Grata pela visita . Abraços

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