domingo, 7 de agosto de 2011

Carlos Drummond de Andrade




Caso do vestido


"Nossa mãe , o que é aquele

vestido , naquele prego ?


Minhas filhas , é o vestido

de uma dona que passou .


Passou quando , nossa mãe ?

Era nossa conhecida ?


Minhas filhas , boca presa .

Vosso pai evém chegando .


Nossa mãe , dizei depressa

que vestido é esse vestido .


Minhas filhas , mas o corpo

ficou frio e não o veste .


O vestido , neste prego

está morto , sossegado .


Nossa mãe , esse vestido

tanta renda , esse segredo .


Minhas filhas , escutai

palavras da minha boca .


Era uma dona de longe ,

vosso pai enamorou-se .


E ficou tão transtornado ,

se perdeu tanto de nós ,


se afastou de toda vida ,

se fechou se devorou ,


chorou no prato de carne ,

bebeu , brigou , me bateu ,


me deixou com vosso berço ,

foi para a dona de longe ,


mas a dona não ligou .

Em vão o pai implorou .


Dava apólice , fazenda ,

dava carro , dava ouro ,


beberia seu sobejo ,

lamberia seu sapato .


Mas a dona nem ligou .

Então vosso pai , irado ,


me pediu que lhe pedisse

a essa dona tão perversa ,


que tivesse paciência

e fosse dormir com ele ...


Nossa mãe , porque chorais ?

Nosso lenço vos cedemos .


Minhas filhas , vosso pai

chega ao pátio .Disfarcemos .


Nossa mãe , não escutamos

pisar de pé no degrau .


Minhas filhas , procurei

aquela mulher do demo .


E lhe roguei que aplacasse

de meu marido a vontade .


Eu não amo teu marido ,

me falou ela se rindo .


Mas posso ficar com ele

se a senhora fizer gosto ,


só pra lhe satisfazer ,

não por mim , não quero homem .


Olhei para vosso pai

os olhos dele pediam .


Olhei para a dona ruim ,

os olhos dela gozavam .


O seu vestido de renda ,

de colo mui devassado ,


mais mostrava que escondia

as partes da pecadora .


Eu fiz pelo-sinal

me curvei ... disse que sim .


Sai pensando na morte ,

mas a morte não chegava .


Andei pelas cinco ruas ,

passei ponte , passei rio ,


visitei vossos parentes ,

não comia , não falava ,


tive uma febre terçã ,

mas a morte não chegava .


Fiquei fora de perigo ,

fiquei de cabeça branca ,


perdi meus dentes , meus olhos ,

costurei , lavei , fiz doce ,


minhas mãos se escalavraram

meus anéis se dispersaram ,


minha corrente de ouro

pagou conta de farmácia .


Vosso pai sumiu no mundo .

O mundo é grande e peuqeno .


Um dia a dona soberba

me aparece já sem nada ,


pobre , desfeita , mofina ,

com sua trouxa na mão .


Dona , me disse baixinho ,

não te dou vosso marido ,


que não sei onde ele anda .

Mas te dou este vestido ,


última peça de luxo

que guardei como lembrança ,


daquele dia de cobra

de maior humilhação .


Eu não tinha amor por ele ,

ao depois amor pegou .


Mas então ele enjoado

confessou que só gostava


de mim como eu era dantes .

Me joguei as suas plantas,


fiz toda sorte de dengo ,

no chão rocei minha cara ,


me puxei pelos cabelos ,

me lancei na correnteza ,


me cortei de canivete ,

me atirei no sumidouro ,


bebi fel e gazolina ,

rezei duzentas novenas ,


dona , de nada valeu :

vosso marido sumiu .


Aqui trago minha roupa

que recorda meu malfeito


de ofender dona casada

pisando no seu orgulho .


Recebei esse vestido

e me dai vosso perdão .


Olhei para a cara dela

quede os olhos cintilantes ?


quede graça de sorriso ,

quede colo de camélia ?


quede aquela cinturinha

delgada como jeitosa ?


quede pezinhos calçados

com sandálias de cetim ?


Olhei muito para ela

boca não disse palavra .


Peguei o vestido , pus

neste prego da parede .


Ela se foi de mansinho

e já na ponta da estrada


vosso pai aparecia .

Olhou pra mim em silêncio ,


mal reparou no vestido

e disse apenas - Mulher ,


põe mais um prato na mesa .

Eu fiz , ele se assentou ,


comeu , limpou o suor ,

era sempre o mesmo homem ,


comia meio de lado

e nem estava mais velho .


O barulho da comida

na boca , me acalentava ,


me dava uma grande paz ,

um sentimento esquisito


de que tudo foi um sonho ,

vestido não há ... nem nada


Minhas filhas , eis que ouço

vosso pai subindo a escada ."

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