sexta-feira, 7 de março de 2014

CARTA DE CAIO FERNANDO ABREU

Victor  Bregeda 

Escrever  era  algo fundamental para
 Caio Fernando Abreu .
Ele  dizia que se expressava  melhor  " por escrito" ,
 por isso escreveu  tantas  e tão belas  cartas .
Aqui , coloco alguns trechos de uma carta  que ele enviou
ao amigo jornalista  José Márcio Penido , em 1979 .
Nela , estimula o amigo a escrever , fala do processo
de criação e de sua admiração por Clarice Lispector .


"   Porto , 22 de dezembro de  1979

 Zézim ,

cheguei  hoje  de tardezinha  da praia , fiquei lá 
uns  cinco dias , completamente só ( ótimo !),
e encontrei  tua carta .
( ...)
Das poucas  linhas  da  tua carta , 12 frases 
 terminam  com ponto de interrogação .
 São , portanto , perguntas .
( ...)
Você  quer  escrever .
 Certo , mas você quer escrever ?
Ou  todo mundo  te  cobra  e você acha que tem 
que escrever ? 
( ...)
Isolando as cobranças  você continua querendo ?
Então vai , remexe fundo , como diz um poeta
gaúcho  Gabriel  de Britto Velho ,
" apaga o cigarro no peito / diz pra ti 
o que não gostas de ouvir /diz tudo ".
Isso é escrever .
 Tira  sangue com as unhas .
E não importa  a forma .
Mas tem que sangrar    a- bun-dan-te-men-te .
Você  não está com medo desta entrega ?
Porque dó , dói , dói .
É de uma solidão assustadora .
( ...)
Eu conheci razoavelmente  bem Clarice Lispector .
Ela era infelicíssima, Zézim .
A primeira vez que conversamos  eu chorei
depois a noite inteira , porque ela inteirinha
me doía, porque parecia se doer também ,
de tanta compreensão  sangrada  de tudo .
Te  falo nela porque Clarice , pra mim ,
é o que mais conheço de GRANDIOSO , 
literariamente  falando .
Ela se entregou  completamente  ao
seu trabalho de criar .
Mergulhou na sua própria   trip  e foi
inventando caminhos  na maior solidão .
Como Joyce . Como Kafka , louco e só
em Praga . Como Van Gogh .
 Como Artaud,ou  Rimbaud .
É  esse  tipo de criador que você quer ser ?
Então  entregue-se  e pague o preço
do pato . Que , frequentemente , é 
muito  caro .
( ...)
Zézim , remexa  na memória , na infância , 
nos sonhos , no poço sem fundo do inconsciente :
é  lá que esta o seu texto .
Sobretudo , não se angustie  procurando-o :
ele vem até você ,
 quando você e ele estiverem prontos .
Cada um tem seus processos , 
você precisa  entender os seus .
( ...)
E  ler , ler é alimento de quem escreve .
Várias vezes  você me disse que não
conseguia mais ler .
Que não gostava mais de ler .
Senão gosta de ler ,
como vai gostar de escrever ?
Ou escreva  então para destruir o texto 
( ...)
Quanto  a  mim , te falava desses dias na praia .
Pois olha , acordava às seis , sete da manhã ,
ia  pra praia , corria uns quatro quilômetros,
fazia exercícios, lá pelas dez voltava , 
ia cozinhar  meu arroz . Comia , descansava 
um pouco , depois  sentava e escrevia .
Ficava  exausto . Fiquei exausto .
Passei os dias falando sozinho , mergulhado 
num texto, consegui arrancá-lo .
Era  um farrapo que tinha nascido em setembro ,
em Sampa . Aí , nasceu , sem que eu planejasse .
Estava  pronto  na minha cabeça .
Chama-se  Morangos Mofados ,
vai  levar  uma epígrafe de
 Lennon& McCartney, tô aqui com a letra 
de Strawberry fields  forever  pra traduzir .
Zézim , eu acho que tá tão bom .
( ...)
Quando  terminei Morangos Mofados ,
escrevi em baixo , sem querer ,
"criação é coisa  sagrada ."
Zézim , me dê notícias , muitas ,
e rápido .
E te cuida , por favor , te cuida bem .
Qualquer poço  mais escuro ,
disque 0512-33-41-97.
Eu  posso  pelo menos  ouvir .
Não leve a mal alguma dureza  dita.
É porque  te quero claro .
Citando Guilherme Arantes , pra terminar :
" Eu quero te ver com saúde / 
sempre de bom humor / e de boa vontade ."
Um  beijo do Caio  "


in , Morangos  Mofados 

Som   na  caixa ...

.







17 comentários:

  1. Elogiar a tua escolha disse para mim mesmo que não o faria mais porque estava ficando muito repetitivo. Parecia coisa de quem não tinha o que dizer. Como não fazê-lo diante de escolha tão acertada, tão bem escolhida, tão alentadora, tão estimuladora. Tão, tão, que poderia ficar agora repetindo este advérbio. E, eis novamente o tão, tão significativa para quantos se aventuram pela escrita. E quantas verdades aniquiladoras Caio Fernando Abreu nos dá. Quantas preleções em texto tão curto que não parece um literato, mas um pedagogo ao ensinar o caminho das pedras. Não há como sair ileso da leitura de Morangos mofados, mas quem não fez, certamente, não sairá ileso daqui deste fragmento. Sair fragmentado será bom demais, pois o melhor da fragmentação é reunir os pedaços para formar um todo novamente.
    Meus beijos, Marisa!

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  2. José Carlos , para vocês que tem o dom da escrita é mera constatação a carta do Caio Fernando . Eu , como muitos leitores , fico fascinada pelo que fazem com as palavras e os aplaudo . Você , sempre generoso nos comentários . Obrigada . Beijos

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  3. Olá Marisa!
    Antes de mais gostaria de dizer que é sempre um prazer visitá-la porque por aqui raramente encontro algo que não seja novidade para mim. Como neste caso de Caio Fernando Abreu que é praticamente desconhecido em Portugal.
    Só o título "Morangos Mofadas" é já deveras inspirador, e a carta é belíssima, intempestiva, poética, de uma força que caracteriza a verdadeira amizade.
    Adorei ler. E a admiração dele por Clarice é tão compreensível; Clarice escrevia tão bem!
    E a música tinha mesmo de ser Strawberry Fields Forever...:-)
    Uma beleza, Marisa!
    xx

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    1. Laura , agradeço suas palavras e me sinto recompensada pelas escolhas . Gosto bastante da escrita do Caio Fernando
      que morreu em 1996 , aos 47 anos . Foi também jornalista e dramaturgo e sua literatura tem sentidos muito aguçados . Há , no blog , alguns posts com fragmentos de sua obra . Se tiver um tempo venha conhecê-los . Beijos e boa semana

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    2. Vida tão curta, infelizmente...
      Obrigada, Marisa, darei uma vista de olhos, sim.
      xx

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  4. Concordo plenamente com a querida amiga Laura;;;td por aqui é sempre interessante.
    abraços meus querida flor marisa

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  5. Muito obrigada , Lia . Fico contente com sua carinhosa visita . Beijos e boa semana

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  6. OI MARISA!
    SEM PALAVRAS, ADOREI, NUNCA VI UMA DEFINIÇÃO MAIS PERFEITA DO QUE É ESCREVER,
    CRIAR, ESTÁ TUDO LÁ, GUARDADINHO, MAS TRAZER OS VERSOS ÀS PALAVRAS CUSTA, MAS QUANDO VEM, É COM UMA CLAREZA QUE AS VEZES ASSUSTA.
    "CAIO FERNANDO ABREU", MAGO, GÊNIO, TUDO...
    ADOREI. PARABÉNS ATRASADOS PELO "NOSSO DIA".
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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    1. Zilani , fico feliz com a sua aprovação . Vocês escritores sabem como é sofrido e necessário o mergulho interior para dele extrair a literatura . Assim , como leitora , só posso reverenciá-los . Beijos

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  7. Marisa, queria poder colar na alma alguns trechos dos melhores textos do Caio, mas em especial algumas poucas frases dessa carta. Obrigada querida, elas me soaram como bálsamo. Li certa vez que Caio não tinha medo de confessar aos amigos sua maior vontade, dizendo: “Eu queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi” Desejo realizado!
    Querida obrigada pela visita e por deixar-me sempre tão feliz com seus comentários!
    Beijo e uma linda semana,
    Denise – dojeitode.blogspot.com

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  8. Denise , você também escritora , entende bem a carta do Caio Fernando ao amigo . Encontrei um depoimento do jornalista José Márcio Penido , constante do livro " Para sempre teu Caio F " que demonstra o amor de Caio pela escrita : " Eu nunca vi ninguém escrever tanto . Com tanta assiduidade , tanta paixão . De manhã , de tarde , de noite , de madrugada , no ônibus , na redação , na fila , na coxa , no guardanapo, na bolacha do chope , no papelzinho fuleiro , Caio estava sempre escrevendo . Dom , fado , sina . Conheci Caio Fernando há uma eternidade , E há duas eternidades morro de saudades do Caíto . " Agradeço sua visita . Beijos

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  9. Olá Marisa!!
    Caio é ótimo..adoro os textos dele.
    Terminar com música dos Beatles,aí é demais.
    Abraços,
    Sandra

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  10. Sandra , bom estarmos em sintonia . Obrigada por vir . Beijos

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  11. Escrevo diariamente e sinto no exercício do escrever muito mais alívio do que dor.
    Cadinho RoCo

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  12. Cadinho , fico contente ao saber que seu processo de criação passa mais pelo alívio que pela dor . Obrigada pelo comentário . Beijos

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  13. Magnifica Entrada sobre Caio Fernando Abreu esbozando sus sensaciones y sentimientos y esa admiración por Clarice Lispector.
    ¡¡¡Hola!!!¡¡¡Ya estoy aquí, de nuevo!!!Un poco tarde, pero se me han acumulado los asuntos propios y otros extraordinarios de Actividades que tenemos que ir desarrollando. El Próximo Viernes, día 28, publicaré mi Entrada de esta Nueva Etapa...Espero Te guste.
    Un Abrazo y Besines desde Asturies.
    ¡¡¡Gracias por estar siempre ahí!!!

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  14. Pedro Luis ,
    Muito contente com sua visita .
    Obrigada .
    Beijos

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