sábado, 23 de maio de 2015

A SAIA ALMARROTADA

Madalina  Iordoche -Levay

( ...)

"Na  minha vila , a única do mundo , as mulheres 
sonhavam com vestidos  novos  para saírem .
Para  serem abraçadas  pela felicidade .
A mim , quando deram a saia de rodar , 
eu  me tranquei  em casa .
mais que fechada , me apurei invisível ,
eternamente noturna .
Nasci para cozinha ,  pano e pranto .
Ensinaram-me tanta vergonha  em sentir
prazer , que acabei sentindo prazer em
ter vergonha .
Por  isso , perante a oferta do vestido , 
fiquei  dentro , no meu ninho ensombrado .
No dia seguinte , as outras chegariam e me
falariam do baile , das lembranças cheias
de riso matreiro .
E nem  inveja  sentiria .

( ...)

Na  minha  vila  as  mulheres  cantavam .
Eu  pranteava .
Apenas quando chorava me sobrevinham belezas .
Só  a lágrima  me desnudava , só ela me enfeitava .

( ...)

Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se
ele  estivesse  vivo .
Era  essa  voz que fazia Deus  existir .
Que  me  ordenava que ficasse feia ,
 desviçosa a vida  inteira .
Eu  acreditava que nada era mais antigo 
que meu pai .
Sempre  ceguei em obediência ,
 enxotando  tentações  que piripilampejavam
a minha meninice .
Obedeci mesmo quando ele ordenou :
Vá  lá fora e pegue fogo neste vestido !
Eu  fui ao pátio com  a prenda que meu tio 
secretamente  me havia oferecido .
Não  cumpri .
Guiaram-me  os mandos do diabo  e ,
numa cova  ocultei esse enfeite .

( ...)

E  pergunto : posso agora , meu pai ,
agora que já tenho mais rugas que pregas tem
esse vestido , posso agora me embelezar de vaidades ?
Fico  à  espera de sua autorização  enquanto vou ao
pátio  desenterrar o vestido do baile que não houve .
E visto-me  com ele , me resplandeço ante o espelho ,
rodopio  para enfunar a roupa .
Uma diáfana música me embala pelos corredores 
da  casa .
Agora , estou sentada , olhando a saia rodada ,
a saia amarfanhosa , almarrotada    .
E parece  que me sento  sobre minha própria vida . "

Mia  Couto ,
in , "  O  Fio das Missangas "

Conheci  o premiado escritor Mia Couto ,
há alguns anos ,  lendo   
" O Fio das Missangas ".
A  cada  conto , a poeticidade  com que ele manejava
as palavras  e colocava as metáforas , fazia toda
diferença  na configuração do texto  trazendo um
colorido único que me encantou .
 Foi  paixão  à primeira leitura .
Desde então ,  seus livros sempre me fazem companhia .
Divido com vocês excertos do conto ", " A saia almarrotada "
que já havia publicado em setembro de 2010 .

Som  na  caixa ...

18 comentários:

  1. Nossa Marisa, que texto incrível!
    Sou fã do Mia Couto, li quase tudo dele, menos esse livro talvez...
    Já favoritei e vou compartilhar com as mulheres do Círculo, tem tudo a ver com o livro que estamos estudando, em um dos capítulos a autora fala de como as meninas, às vezes, se tornam "filhas do pai" e anulam sua feminilidade, passam a vida a tentar agradar ao pai (mesmo que ausente), vivem uma vida que não é sua, muito triste...
    Bjs e bom domingo

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    1. Cristiane ,
      Mia Couto , neste livro de 29 contos ,
      aborda,amplamente, a temática feminina , dando corpo e voz ao eu mais íntimo de cada uma das personagens .
      Na "saia almarrotada " , o espaço da mulher ainda é a casa do pai , evidenciando sua submissão e condição de inferioridade e subserviência . Fico feliz que os excertos que postei serão compartilhados com suas alunas do Círculo . Beijos e boa semana .

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  2. Gosto muito de Mia Couto e da sua escrita e este trabalho com excertos do conto "A saia amarrotada" está muito bom.
    Tenho que ler este livro que não conhecia.
    Um abraço e bom Domingo.

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    1. Francisco Manuel , leia este livro de contos lançado em 2009 . Tenho certeza que gostará .
      Abraços e bela semana .

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  3. Um texto incrível de Mia Couto.
    Eu já conhecia,mas valeu ler de novo.
    Bjs Marisa,obrigada pela visita e um ótimo domingo.
    Carmen Lúcia.

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    1. Carmem Lúcia ,
      Com alegria percebo que foi útil meu post .
      Beijos e uma semana feliz .

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  4. Partilho do(s) seu(s) gosto(s), Marisa, Mia Couto é garante de uma belíssima e inusitada viagem pelas palavras.

    Um beijinho :)

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    1. Poeta , realmente , Mia Couto cria textos ricos em metalinguagem , intertextualidade , ironia e auto reflexão . Constrói um discurso inovador e cheio de poesia . Obrigada por ter vindo . Beijos .

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  5. Já conhecia, mas ao voltar a ler estes excertos, uma lágrima assoma ao meu olhar, por todas as mulheres, imensas, que ainda hoje dirigem a sua vida de acordo com os desígnios de um pai, ou de uma marido. No fundo, a tremenda injustiça de um certo tipo de educação.
    Quando leio isto, fico até feliz de nunca ter convivido com o meu pai. Um ser que mesmo hoje, acha que os homes são donos das mulheres e das suas vontades.
    Belo post, Marisa!
    xx

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    1. Laura ,
      Infelizmente ainda há , como no conto , mulheres trancadas em si mesmas , temendo os rígidos padrões do patriarcado .
      Nem mesmo a maturidade as liberta desta reclusão , pois vivem condicionadas à servidão para com a figura masculina de suas famílias . Fico feliz que tenha lhe agradado minha escolha .
      Beijos .

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  6. Esa saia que sirve de metáfora para aquellos tiempos en los que la Mujer estaba supeditada y subordinada a creencias y tradiciones misógenas completamente machistas en una sociedad arcaica e injusta hacia la voluntad de las Mujeres.
    Maravilloso Texto de Mia Couto; al igual que ese Som na caixa, con una canción de indudable belleza.
    Abraços e Beijos.

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    1. Pedro Luis , a saia também nos mostra quão a alma da narradora ficou rota , rasgada e sofrida com a vida que lhe era ofertada . Obrigada pela carinhosa visita . Beijos

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  7. Mais uma vez uma excelente escolha...é maravilhoso viajar pelas fecundas estradas desse autor maravilhoso!!! Abraços a ti flor amiga Marisa..e parabéns pela escolha!!!

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  8. Lia , é bom ter a escolha aprovada . Penso que Mia Couto e sua escrita agradam a todos . Venha sempre , amiga . Obrigada . Beijos .

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  9. Bom dia, conheço Mia Couto através dos seus livros, admiro o que escreve e pela sua posição contra o novo acordo ortográfico.
    AG

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  10. António , tão bom partilhar com aqueles com mesmo gosto literário . Agradeço a visita . Abraços .

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  11. Quando comecei a ler soou-me logo a algo familiar... Só podia ser Mia Couto. Chamo-lhe o malabarista das palavras, no seu melhor sentido. Deslumbro-me com a recriação do léxico e com a sua forma de narrar ou versejar. (...) nestas reticências cabe tudo aquilo que é comum no pensamento dos seus leitores.
    BJO, Marisa :)

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  12. Odete , gostei da expressão " malabarista das palavras ". Mia Couto faz o que quer com elas e nos deixa atônitos . Beijos .

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