Madalina Iordoche -Levay
( ...)
"Na minha vila , a única do mundo , as mulheres
sonhavam com vestidos novos para saírem .
Para serem abraçadas pela felicidade .
A mim , quando deram a saia de rodar ,
eu me tranquei em casa .
mais que fechada , me apurei invisível ,
eternamente noturna .
Nasci para cozinha , pano e pranto .
Ensinaram-me tanta vergonha em sentir
prazer , que acabei sentindo prazer em
ter vergonha .
Por isso , perante a oferta do vestido ,
fiquei dentro , no meu ninho ensombrado .
No dia seguinte , as outras chegariam e me
falariam do baile , das lembranças cheias
de riso matreiro .
E nem inveja sentiria .
( ...)
Na minha vila as mulheres cantavam .
Eu pranteava .
Apenas quando chorava me sobrevinham belezas .
Só a lágrima me desnudava , só ela me enfeitava .
( ...)
Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se
ele estivesse vivo .
Era essa voz que fazia Deus existir .
Que me ordenava que ficasse feia ,
desviçosa a vida inteira .
Eu acreditava que nada era mais antigo
que meu pai .
Sempre ceguei em obediência ,
enxotando tentações que piripilampejavam
a minha meninice .
Obedeci mesmo quando ele ordenou :
Vá lá fora e pegue fogo neste vestido !
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio
secretamente me havia oferecido .
Não cumpri .
Guiaram-me os mandos do diabo e ,
numa cova ocultei esse enfeite .
( ...)
E pergunto : posso agora , meu pai ,
agora que já tenho mais rugas que pregas tem
esse vestido , posso agora me embelezar de vaidades ?
Fico à espera de sua autorização enquanto vou ao
pátio desenterrar o vestido do baile que não houve .
E visto-me com ele , me resplandeço ante o espelho ,
rodopio para enfunar a roupa .
Uma diáfana música me embala pelos corredores
da casa .
Agora , estou sentada , olhando a saia rodada ,
a saia amarfanhosa , almarrotada .
E parece que me sento sobre minha própria vida . "
Mia Couto ,
in , " O Fio das Missangas "
Conheci o premiado escritor Mia Couto ,
há alguns anos , lendo
" O Fio das Missangas ".
A cada conto , a poeticidade com que ele manejava
as palavras e colocava as metáforas , fazia toda
diferença na configuração do texto trazendo um
colorido único que me encantou .
Foi paixão à primeira leitura .
Desde então , seus livros sempre me fazem companhia .
Divido com vocês excertos do conto ", " A saia almarrotada "
que já havia publicado em setembro de 2010 .
Som na caixa ...
Nossa Marisa, que texto incrível!
ResponderExcluirSou fã do Mia Couto, li quase tudo dele, menos esse livro talvez...
Já favoritei e vou compartilhar com as mulheres do Círculo, tem tudo a ver com o livro que estamos estudando, em um dos capítulos a autora fala de como as meninas, às vezes, se tornam "filhas do pai" e anulam sua feminilidade, passam a vida a tentar agradar ao pai (mesmo que ausente), vivem uma vida que não é sua, muito triste...
Bjs e bom domingo
Cristiane ,
ExcluirMia Couto , neste livro de 29 contos ,
aborda,amplamente, a temática feminina , dando corpo e voz ao eu mais íntimo de cada uma das personagens .
Na "saia almarrotada " , o espaço da mulher ainda é a casa do pai , evidenciando sua submissão e condição de inferioridade e subserviência . Fico feliz que os excertos que postei serão compartilhados com suas alunas do Círculo . Beijos e boa semana .
Gosto muito de Mia Couto e da sua escrita e este trabalho com excertos do conto "A saia amarrotada" está muito bom.
ResponderExcluirTenho que ler este livro que não conhecia.
Um abraço e bom Domingo.
Francisco Manuel , leia este livro de contos lançado em 2009 . Tenho certeza que gostará .
ExcluirAbraços e bela semana .
Um texto incrível de Mia Couto.
ResponderExcluirEu já conhecia,mas valeu ler de novo.
Bjs Marisa,obrigada pela visita e um ótimo domingo.
Carmen Lúcia.
Carmem Lúcia ,
ExcluirCom alegria percebo que foi útil meu post .
Beijos e uma semana feliz .
Partilho do(s) seu(s) gosto(s), Marisa, Mia Couto é garante de uma belíssima e inusitada viagem pelas palavras.
ResponderExcluirUm beijinho :)
Poeta , realmente , Mia Couto cria textos ricos em metalinguagem , intertextualidade , ironia e auto reflexão . Constrói um discurso inovador e cheio de poesia . Obrigada por ter vindo . Beijos .
ExcluirJá conhecia, mas ao voltar a ler estes excertos, uma lágrima assoma ao meu olhar, por todas as mulheres, imensas, que ainda hoje dirigem a sua vida de acordo com os desígnios de um pai, ou de uma marido. No fundo, a tremenda injustiça de um certo tipo de educação.
ResponderExcluirQuando leio isto, fico até feliz de nunca ter convivido com o meu pai. Um ser que mesmo hoje, acha que os homes são donos das mulheres e das suas vontades.
Belo post, Marisa!
xx
Laura ,
ExcluirInfelizmente ainda há , como no conto , mulheres trancadas em si mesmas , temendo os rígidos padrões do patriarcado .
Nem mesmo a maturidade as liberta desta reclusão , pois vivem condicionadas à servidão para com a figura masculina de suas famílias . Fico feliz que tenha lhe agradado minha escolha .
Beijos .
Esa saia que sirve de metáfora para aquellos tiempos en los que la Mujer estaba supeditada y subordinada a creencias y tradiciones misógenas completamente machistas en una sociedad arcaica e injusta hacia la voluntad de las Mujeres.
ResponderExcluirMaravilloso Texto de Mia Couto; al igual que ese Som na caixa, con una canción de indudable belleza.
Abraços e Beijos.
Pedro Luis , a saia também nos mostra quão a alma da narradora ficou rota , rasgada e sofrida com a vida que lhe era ofertada . Obrigada pela carinhosa visita . Beijos
ExcluirMais uma vez uma excelente escolha...é maravilhoso viajar pelas fecundas estradas desse autor maravilhoso!!! Abraços a ti flor amiga Marisa..e parabéns pela escolha!!!
ResponderExcluirLia , é bom ter a escolha aprovada . Penso que Mia Couto e sua escrita agradam a todos . Venha sempre , amiga . Obrigada . Beijos .
ResponderExcluirBom dia, conheço Mia Couto através dos seus livros, admiro o que escreve e pela sua posição contra o novo acordo ortográfico.
ResponderExcluirAG
António , tão bom partilhar com aqueles com mesmo gosto literário . Agradeço a visita . Abraços .
ResponderExcluirQuando comecei a ler soou-me logo a algo familiar... Só podia ser Mia Couto. Chamo-lhe o malabarista das palavras, no seu melhor sentido. Deslumbro-me com a recriação do léxico e com a sua forma de narrar ou versejar. (...) nestas reticências cabe tudo aquilo que é comum no pensamento dos seus leitores.
ResponderExcluirBJO, Marisa :)
Odete , gostei da expressão " malabarista das palavras ". Mia Couto faz o que quer com elas e nos deixa atônitos . Beijos .
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