quinta-feira, 28 de junho de 2012

DE CABEÇA PENSADA


"  Tinha 30  anos  quando  decidiu : 
 a  partir  de  hoje , nunca  mais  lavarei  a  cabeça . 
Passou  o  pente  devagar  nos  cabelos , pela  última  vez
molhados . E  começou  a  construir  sua  maturidade .


Tinha  50  anos , e o marido  já  não  pedia , os filhos
haviam  deixado  de  suplicar .
Asseada , limpa , perfumada , só a cabeça  preservada ,
intacta  com seus  humores , seus humanos óleos .
Nem  jamais  se  deixou   tentar  por  penteados  novos
ou  anúncios  de xampu .
Preso  na  nuca  o cabelo crescia  quase  intocado  ,
sem que nada  além  do  volume  do  coque  acusasse  o
crescente  brotar .


Aos  80  ,  a velhice  a  deixou  entregue   a uma  enfermeira .
A  qual ,  a  bem  da  higiene , levou-a  um  dia  para  debaixo
do  chuveiro , abrindo  o  jato  sobre  a  cabeça  branca .


E  tudo  o   que  ela  mais  havia  temido  aconteceu .


Levadas  pela  água ,  escorrendo  liquefeitas  ao  longo
dos  fios   para  perderem-se  no  ralo  sem  que  nada
pudesse  retê-las ,  lá  se  foram ,  uma  a  uma ,
suas  lembranças  ."


Marina  Colassanti , in  "  Contos  de  Amor  Rasgado "



 


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