sexta-feira, 6 de junho de 2014

CUIDADO COM PESSOAS COMO EU

Alberto  Seveso

É  o segundo romance de Eduardo Basczczyn ,
escritor e jornalista ,
 nascido em São Paulo ,em 1976.

Abrir ou não a porta ?
É  a questão colocada pelo autor .
Luísa  foi abandonada pelo namorado  
e se surpreende ,  quando , depois de
certo tempo , ele volta ao apartamento 
dela em busca de coisas que ainda restavam lá .
Começa bater à porta e ela se recusa a abri-la .
Aí , inicia-se  o monólogo
 catártico e ininterrupto dela.
Gosto da forma intensa e lírica do
autor conduzir  a história.
Por isto , partilho com vocês alguns fragmentos .

"  se eu não preciso mais nem do que 
está dentro de mim , como você pode
vir bater nesta porta atrás  de restos ?
De pequenos objetos , sem importância ,
deixados para trás . Como pode atravessar
a cidade toda para vir buscar  esse
seu tão pouco que sobrou ?
Porque eu não tive tempo . Está me ouvindo ?
Eu ainda não tive tempo de arrumar 
as suas coisas .
(...)  Acho melhor você parar  de 
bater na porta desse jeito .
Nesse mesmo ritmo .
Com esse mesmo intervalo entre 
as batidas , como se tivesse ensaiado
antes . Eu não vou abrir . Está ouvindo ?
Hoje  serei a desobediente .
A menina que, depois  do não , 
escreve a mesma frase  na lousa  centenas
de vezes  até  o final do giz .
(...)  Há anos coleciono castigos .
E hoje novamente desobedeço .
Não abro esta porta apesar  da vontade
de ver  a sua cara  de decepção  do 
outro lado . Eu não estou morta como
você gostaria .
 Eu ainda  não estou morta .
(...) Não completamente .
Porque olha :  as janelas estão abertas .
O sol  tem entrado quase todas as manhãs,
teimoso , se contorcendo , entre os vãos dos
prédios da frente . Passando pelos mínimos
espaços  que encontra  entre tantos obstáculos 
até aqui . É preciso abrir as janelas , não é ?
É preciso  deixar que pelo menos um filete 
de sol  passeie  pelo apartamento todos os dias .
É preciso  de pelo menos um raio milimétrico 
de luz  para que a planta não morra .
Mais  do que encharcar  a terra com água ,
é preciso  abrir as  janelas , eu sei .
( ...)
  Eu sei que poderia desvirar a chave e 
abrir poucos centímetros desta porta .
Que poderia  olhar  sua cara pelo espaço e 
falar tudo para os seus olhos ,
mas são os pequenos vãos que permitem a 
entrada de insetos silenciosos 
no meio da madrugada .
E você invadiria o apartamento  como um deles.
( ...)
Eu   não mexi em nada ainda .
Apenas  nas fotos .
Já disse que troquei as fotos ?
Todas . Porque não aguentava mais 
seus sorrisos pelos cantos .
Seus olhos pregados nas paredes observando
meus dias . Suas miniaturas vivendo em
cima dos móveis . Ao lado da cama .
Sobre o velho piano , como se nada 
tivesse acontecido .
Como se a última noite não tivesse existido .
Você  , em todos os lugares do apartamento.
Em todos os momentos . 
Olhando os meus sonos .
Ouvindo as minhas conversas .
Acordado , me fazendo companhia 
nas insônias  sem que eu pedisse .
Sem que eu quisesse.
Pares de olhos arregalados pela casa ,
brotando por todos os lados .
Espiando, do corredor , meus banhos
de porta aberta . Minhas saídas e minhas
voltas . Meus choros . Minhas febres .
Escutando minhas orações .
Aplaudindo minhas danças  no 
meio da sala .
Cantarolando  com meus assobios
desafinados.
Descobrindo os segredos 
que carrego nos bolsos .
Fantasma controlando os meus horários .
Por isto eu troquei as fotos . Todas .
Por coisas da infância , já disse ?
  No seu lugar  agora , um outro passado .
Mais distante . Em vez dos seus olhos ,
os de uma menina descolorida pelo tempo .
Amarelada .
(...)
Você  chegou a ver esta foto ?
Eu : pano branco e vagabundo ,
vela em uma das mãos ,
 as  asas presas nas costas :
 um anjo .
(...)
Tirei  você de cima do piano , transformando
seu rosto e seu sorriso em pedaços  atirados
no lixo , e coloquei essa foto .
Eu , um anjo .
( ...)

Tola . Ingênua . Desavisada .
Sem saber que , em uma noite qualquer ,
você, deixaria o passado , atravessaria 
a cidade infernal  e retornaria 
como se tivesse  colado 
as partes picadas . Como se tivesse 
saltado de uma das fotografias remendadas .
Grudadas , Refeitas . 
Como é que a gente rasga o que tem 
na memória ?
Por que  não me ajuda ?
Por que não me responde ?
Por que não afasta as suas mãos desgraçadas 
da porta , por um momento, e me
diz ? 
Como é que a gente rasga o  que tem na memória ?  
( ...)
De repente , você e seu retorno egoísta 
provando que estou apenas substituindo
fantasmas . Que é perda de tempo trocar 
suas fotografias pelas da menina do passado .
Pela criança descolorida  pelos anos .
Amarelada. Pela menina desbotando aos 
poucos  todos  os dias .
De repente,você de volta  me mostrando
que os ferros duros vão permanecer para
sempre no mesmo lugar .
Machucando as minhas costas .
Só a dor traz o crescimento , eu sei .
Como é que a gente rasga o que tem na memória ?"

Eduardo Baszczyn


Som  na  caixa ...












36 comentários:

  1. Este ainda não conhecia. Fragmentos da realidade que totalizam o real, como as fotos, das duas fases, de uma forma arrasadora. Uma representação da vida com uma precisão na linguagem que nos apequena. Uma tensão narrativa que nos corrói, que nos dilacera. Cartilagens, órbitas, arcadas, raízes deitadas que aparentam não definhar. Brilhante, para mim, sobretudo, a beleza da linguagem.
    Beijos, Marisa!

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  2. La Vida misma contada en este majestuoso Relato.
    Perfectamente narrado y lleno de profundidad y sensibilidad.
    Abrazos y Besines.

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  3. José Carlos , tão bom saber a opinião de um especialista ! A leitura deste livro me dilacerou . Como você aponta , a beleza da linguagem nos fascina . Obrigada por chegar logo e deixar mais luzidio este espaço . Beijos

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  4. Fico feliz que tenha gostado , Pedro Luis .
    Me agrada muito a escrita do autor .
    Beijos

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  5. Não conhecia ainda e gostei muito! beijos,tudo de bom nesse fds!chica

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    1. Me alegra ter gostado , Chica . Agradeço e retribuo os votos de bom final de semana . Beijos

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  6. Oi Marisa,

    Puxa, que livro intenso deve ser! O autor escreve com uma propriedade, como se ele fosse realmente a personagem. Adorei o trecho que selecionou.
    Bjs querida e ótimo final de semana

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    1. Cristiane , o livro é muito
      bom. O autor tem vasto conhecimento da alma feminina , penso eu .
      Os amigos tem gostado dos trechos que selecionei . Obrigada . Beijos

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  7. Muito boa a postagem no seu conjunto...
    Mas o relevante é mesmo o escritor que você realça e eleva (não conheço) através dos excelentes excertos narrativos que selecionou. Espantoso como "veste a pele" desta personagem neste registo sofredor e acutilante... Grande vontade de ler, mas tenho tantos livros em lista de espera...
    Ao ler, ocorreu-me que este romance bem poderia ser adaptada para teatro.
    Bjo, Marisa :)

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    1. Odete , é muita responsabilidade escolher o que postar quando tenho companhias , como a sua , que fazem da escrita o que desejam . Sou apenas uma leitora e fico envaidecida quando vocês aprovam a publicação . Também pensei , enquanto lia o romance , que uma adaptação teatral seria interessante . Obrigada pela vinda . Beijos

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  8. Se encontrar o livro por aui, o comprarei pois me agradou o excerto.

    Marisa Monte é alguém que gostaria de ver ao vivo, pois tem uma voz muito boa.

    Bom final de semana :)

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  9. Se não encontrar o livro me avise que compro um e mando para você . Será um prazer , acredite . Beijos e ótimo final de semana .

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    1. Obrigadissima pela gentileza :)

      Bem haja!

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    2. Fico aguardando você me contar se conseguiu ou não o livro . Beijos

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  10. Querida , passando para deseja um sábado harmonioso!
    agradeço pela visita tão gentil, volte sempre.
    Deixe também seu link para que os leitores conheçam sua página, que se diga é maravilhosa!
    Bjs
    Nicinha

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  11. Agradeço seu desejo de harmonia neste sábado que está terminando e que foi abençoado . Também , obrigada pelo elogio ao meu espaço . Você sempre generosa e querida . Beijos , Nicinha .

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  12. Marisa; um Domingo d e paz pr ati.Pura Arte por aqui poesia & música...perfeitas!!!bjinsss

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    1. Receber os amigos é sempre bom . Obrigada , Lia . Beijos

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  13. OI MARISA!
    CONFESSO QUE NÃO CONHEÇO A OBRA DESTE ESCRITOR E QUE AQUI TRANSCREVES, APENAS UM PEDACINHO, MAS, JÁ DEU PARA PERCEBER A INTENSIDADE DA ESCRITA DO MESMO.
    GOSTEI MUITO.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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    1. Zilani , a escrita do autor me agrada e fico feliz com a validação da minha escolha . Beijos

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  14. Muito bom escritor! Um texto muito forte, e os excertos levados à cena dariam uma bela peça de teatro.
    Excelente partilha., Marisa. E também gosto muito da Marisa Monte.

    Como sabes estou agora a fazer uma paragem, mas decidi tirar hoje um pedaço da tarde para ver "como param as modas"...:-)
    xx

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    1. Laura , estou muito honrada com sua visita . Sei que está em outros projetos e é gratificante ter uma escritora como você abrilhantando este espaço . Obrigada . Beijos

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  15. Querida amiga

    Também como outros amigos,
    não conhecia o autor,
    mas interessei-por suas palavras.

    São belas
    as palavras
    que nos acariciam
    o coração...

    Obrigado por semear o belo
    em um mundo tão carente
    de sentimentos bons.

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    1. Aluisio , me deixa feliz sua vinda e aprovação . Obrigada . Beijos

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  16. Ótima sua escolha, Marisa.
    Belo e pungente desabafo duma mulher que insiste em ser teimosa até o fim!
    Muito bom.
    Bjo grande
    Carmem

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  17. Que escrita poderosa.

    A música é demais.

    Beijinhos

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  18. Carmem , o desabafo da protagonista é forte , sim . Ela permeia o relato do abandono sentido na infância com a ausência do namorado . A leitura nos deixa dilacerados com sua dor . Acho que acertei na escolha . Obrigada . Beijos

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  19. Obrigada , Pérola . Sua vinda é outra alegria . Beijos

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  20. lindo texto
    bjs
    Flavia
    www.adoteumfocinhocarente.blogspot.com
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  21. Muito interessante não conhecia este autor, beijo Lisette.

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  22. Lisette , mais uma amiga gostando do post . É gratificante saber que fiz boa escolha . Beijos

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  23. Boa tarde,
    O texto é magnifico, como rasgamos nós o que temo na memoria? esta é a verdade que por mim nunca tinha sido pensada.
    Dia feliz
    AG
    http://momentosagomes-ag.blogspot.pt/

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  24. António , você apontou a pergunta que repito por gostar : " Como é que a gente rasga o que tem na memória ? " Beijos

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